Por Céli Pinto
Eleições em dois turnos para cargos do poder executivo é uma ferramenta eleitoral interessante. É particularmente útil em eleições majoritárias, em sistemas pluripartidários onde os dois grandes campos da política ( o campo da esquerda e o campo da direita) estão representados por muitos partidos. Os dois turnos permitem que o eleitor vote no primeiro, no candidato do partido que lhe é mais próximo e, que no segundo turno, haja duas grandes candidaturas reagrupando os partidos nos dois campo.
Em relação às candidaturas, o sistema permite a expressão de diferenças no primeiro turno e no segundo a disputa pelo eleitor de centro, já que os ideologicamente mais definidos, escolhem seus candidatos independe de campanhas políticas. O resultado tem sua vantagens, o eleito constrói um maioria, que mesmo um pouco fictícia o empodera para criar maiorias legislativas e assim ter melhores condições de governar. O lado perverso destes apoios no segundo turno são os acordos pouco republicanos, que podem variar de simples garantia de CCs até propinas milionárias.
De toda forma o segundo turno impede crises como a de 1955, quando Lacerda representando os interesses da UDN, queria embargar a posse de Juscelino Kubitschek com o argumento que JK não tinha a maioria, pois fora eleito com 35.68% dos votos. O argumento lacerdista não teria espaço em uma eleição de dois turnos.
Pensemos nas eleições presidenciais no Brasil pós o regime militar: Collor disputou com Lula; Fernando Henrique Cardoso disputou duas vezes com Lula; Lula disputou com Serra e com Alckmin; Dilma disputou com Serra e com Aécio. Em todos os casos os dois turnos funcionaram perfeitamente. Os dois campos estavam nitidamente definidos no segundo.
Quando pode complicar? Exatamente quando ao contrário da tendência geral, os dois candidatos do segundo turno estão no mesmo campo político, podendo vir inclusive do mesmo governo. Imaginemos, a título de exercício se no lugar de Collor estivesse no segundo turno Brizola disputando com Lula. Como teria ficado o campo do centro direita e da direita? Tal situação tem dois efeitos imediatos, a difícil luta dos dois candidatos para se diferenciarem entre si e a ausência do campo contrário na contenda.
O cenário sem um dos campos, revela um momento de crise na política, pois nas democracias ocidentais estes dois campo que podem ser grosso modo definidos como de direta e esquerda estão presentes historicamente nas eleições. Pode haver momentos em que as cores estão mais fortes ou mais pastéis, mas é muito difícil, estando garantidas as condições mínima de funcionamento de uma democracia representativa, a inexistência destas duas forças. O velho e liberal Bobbio ajuda quando afirma: “Os sistemas democráticos com partidos numerosos continuam a ser descritos como se estivessem dispostos em um arco que vai da direita à esquerda, ou vice-versa. Não perderam nada de sua força significantemente expressões como “direta parlamentar”, esquerda parlamentar”. “governo de direita” , “governo de esquerda”. No interior dos próprios partidos as várias correntes que disputam o direito de dirigir segundo os tempos e as ocasiões históricas costumam se chamar com os velhos nomes de “direita” e “esquerda”. Quando nos referimos aos políticos, não temos nenhuma hesitação em definir por exemplo Occhetto como de esquerda e Berlusconi como de direita”(Bobbio, 1994, p.64). No mesmo texto Bobbio chama a atenção para a condição relacional destes conceitos, se é direita ou esquerda sempre na relação de um com o outro. Mas não perde o foco de que a esquerda está envolvida com questões de igualdade , enquanto para a direta a desigualdade é parte constitutiva do ser humano, se preocupando primordialmente com a liberdade. Afirma que como a liberdade é muito mais exercida pela burguesia no capitalismo, já que aos pobres as possiblidades de escolha são mínimas , é natural que a direita a defenda.
Em alguns momentos de muita gravidade o corte ocorre sem a mediação clara direita – esquerda: como no caso da presença de um partido totalitário no segundo turno, exemplo disto é a possibilidade nas próximas eleições presidenciais francesa da presença de Marine Le Pen a Frente Nacional, de fortes cores fascistas, o que ameaçaria a própria existência da democracia com sua vitória. Ou em casos de lutas por libertação nacional, onde forças retrógadas podem ameaçar uma independência recém conquistada. Nestes cenário se justificaria não tomar em consideração as divisões históricas da luta política em prol de uma grande frente democrática.
Fora estes momentos de ameaça real a democracia ou mesmo da independência nacional, quando um dos campos não consegue chegar ao segundo turno há uma forte tendência para que cresça a abstenção, o voto branco e o voto nulo. Todos previstos na engenharia democrática de qualquer país. Faz parte de um pensamento pré político primário argumentar que não votar em qualquer candidato, seja eles quais forem é se omitir e não exercer um direito democrático. “Lutamos tanto por democracia é agora não vamos votar em nenhum nome?”, é um argumento que beira ao patético e não tem nenhuma referência na teoria política ou nas lutas eleitorais das democracias.
Há diferenças entre a abstenção, o voto em branco e o voto nulo. A abstenção e o voto em branco podem expressar condições muito diversas, puro desinteresse, desilusão, protesto em relação a política em geral, e até costume de não votar, de pensar que a política não tem nada a ver com suas vidas. Já o voto nulo é um voto político por excelência. É um voto de protesto e de presença. No caso do Brasil dois partidos do campo de centro direita se uniram para juntos depor a presidente do campo da centro esquerda e constituir um novo governo com base nestes mesmos dois partidos, que com grande rapidez trata de levar o país a um beco neoliberal com efeitos catastróficos de curto e longo prazo. O projeto neoliberal capitaneado pelo PMDB e PSDB, expressa-se , neste primeiro momento, na PEC 241 que na prática destrói as conquistas da Constituição de 1988 e no projeto de lei da Escola sem partido que reintroduz a censura nas escolas, depois de mais de 20 anos de regime democrático. Este nova cenário deixa claro que onde só estes partidos e seus pequenos aliados estão concorrendo no segundo turno das eleições municipais em 30 de outubro, não há um campo de centro esquerda ou de esquerda na disputa. Neste caso o voto nulo é uma opção democrática. Cada eleitor pode votar em quem quiser, segundo suas posições políticas – ideológicas, seus interesses corporativos, suas simpatias pessoais. Os candidatos podem e devem lutar contra o voto nulo, este é o papel deles. O que não pode acontecer é a desqualificação mal intencionada ou mal informada do voto nulo.
Saiba mais
Porto Alegre: propostas semelhantes, os mesmos temas ignorados e ataques marcam propaganda no 2° turno
BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política.( São Paulo: Editora UNESP, 1995)
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Céli Pinto é Professora Titular do Departamento de História da UFRGS