100 Anos da Revolução Russa: A Luta dos Povos Oprimidos – Lúcio da Costa

Lúcio da Costa

A Revolução Russa cujo centenário ora se comemora, deu impulso inaudito ao movimento de libertação nacional dos povos da África, da Ásia e da América Latina quando renovou e ampliou o significado da luta de libertação dos povos submetidos ao jugo colonial-imperialista.

As razões desta capacidade de polarização e de renovação do pensamento socialista devem ser buscados nas dimensões da Revolução Soviética: nela foram envolvidos dezenas de países, a vivenciaram cerca de 1/3 da população mundial

Inicialmente, as dezenas de nações submetidas à milenar autocracia dos imperadores russos e, nos anos e décadas seguintes os povos submetidos ao domínio dos impérios europeus, japonês e dos Estados Unidos aprenderam que era possível enfrentar e vencer ao domínio imperial.

Na tradição da I e da II Internacional o tema da opressão colonial era extremamente marginal se limitando apenas a um grupo restrito de problemas que diziam respeito, no máximo, às nações ‘civilizadas’. Irlandeses, húngaros, poloneses, finlandeses, sérvios e algumas outras poucas nacionalidades”.

Tanto assim que, para o líder revolucionário vietnamita Ho Chi Min a questão nacional na I e II Internacionais se limitava a “expressões de posicionamento puramente sentimentais que não levam a nada”.

O abandono pela II Internacional do marxismo como método de análise em prol do determinismo e do positivismo — que hegemonizou a produção intelectual no século XIX e em boa parte do século XX — ganhará nitidez com as formulações de Eduard Bernstein, líder do setor revisionista do Partido Social Democrata da Alemanha, para o qual “a civilização superior tem sempre, em relação às inferiores, o maior direito pelo seu lado e, em certos casos até o direito histórico, ou melhor, o dever de submetê-las (…) Só se pode reconhecer um direito condicionado dos selvagens sobre os territórios por eles ocupados. A civilização superior tem aqui, em última análise, também o direito superior”.

Na contramão da acomodação à ordem colonial a Revolução Russa, ela própria realizada na periferia do sistema capitalista, colocará a questão da luta contra a opressão dos povos da Ásia, da África, da América Latina como um elemento central dos debates e da ação levada adiante pelos socialistas.

Em 1919, ao assinalar a vinculação e a solidariedade entre a luta de emancipação do proletariado europeu e dos povos oprimidos o Manifesto da Internacional Comunista, redigido por Trotski, diria:

Nenhuma emancipação das colônias é possível a menos que as classes trabalhadoras da metrópole se emancipem. Os operários e camponeses, não só em Anam, Argélia, Bengala, mas também na Pérsia e na Armênia, atingirão a sua independência apenas na hora em que os trabalhadores de Inglaterra e da França derrubarem Lloyd-George e Clemenceau e tomarem o poder nas suas próprias mãos. […] Se a Europa capitalista envolveu a força as partes mais atrasadas do mundo no remoinho das inter-relações capitalistas, a Europa socialista está preparada para auxiliar as colônias emancipadas através da sua técnica, da sua organização, da sua moral e influência intelectual, de modo a facilitar a transição daquelas para uma economia socialista devidamente organizada. Escravos coloniais da África e da Ásia! Quando soar à hora da ditadura do proletariado na Europa, terá chegado à hora da vossa libertação.

Em 1920, no Azerbaijão, em Bakú, foi realizado por convocatória da III Internacional Comunista – organização de partidos revolucionários fundada posteriormente a vitória da Revolução Soviética – o Congresso dos Povos do Oriente.

Num evento sem igual até o momento na tradição socialista participaram 1891 delegados (as) vindos da Turquia, Pérsia, Egito, Índia, Afeganistão, Baluchistão, Kashgar, China, Japão, Coréia, Arábia, Síria, Palestina, Bucara, Khiva, Daguestão, Cáucaso Norte, Azerbaijão, Armênia, Geórgia, Turquestão, Ferghana, a Região Autônoma de Carmúquia, a República Tártara e o Distrito do Extremo Oriente.

O peruano José Carlos Mariátegui, junto com o cubano Juan Antonio Mella um dos fundadores do marxismo latino-americano, no artigo “Oriente e Ocidente”, publicado em 1925, reconhece a relevância do Congresso de Baku: 

Em agosto de 1920 se efetuou em Baku, apadrinhada e convocada pela Terceira Internacional, uma conferência revolucionária dos povos do Oriente. A revolução social necessita historicamente da insurreição dos povos coloniais. A sociedade capitalista tende a restaurar-se mediante uma exploração mais metódica e intensa de suas colônias políticas e econômicas: a revolução social tem que levantar os povos coloniais contra a Europa e os Estados Unidos para reduzir o número de vassalos e tributários da sociedade capitalista.      

Ho Chi Minh ao refletir sobre sua trajetória política dirá que “em primeiro lugar, foi o patriotismo, e não o comunismo, que me levaram a acreditar em Lênin e na Terceira Internacional. … eu me dei conta de forma gradativa de que somente o socialismo e o comunismo poderiam libertar as nações oprimidas e o povo trabalhador ao redor do mundo da escravidão.”

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“Trabalhadores, a revolução de outubro deu-lhe as fábricas” – 1919

A marcar a mudança efetuada no pensamento e na ação socialista em relação aos povos oprimidos a partir da Revolução Russa o líder revolucionário vietnamita afirmará que esta “convocou os povos para colaborarem com os asiáticos e com os africanos para libertá-los do jugo de seus agressores estrangeiros, de todas as potências ocupantes, dos Governadores Gerais, etc,”.

O impacto da renovação efetuada no marxismo pela Revolução Russa na questão da opressão colonial foi de tal monta que o filósofo italiano Domenico Losurdo dirá que com ela “a conclusão do Manifesto Comunista: “Proletários de todos os países, uni-vos!” muda para Lênin. O novo lema era “Proletários de todos os países, e nações oprimidas do mundo, uni-vos!”.

Desta forma, o legado da Revolução Russa traz consigo a inclusão na tradição dos marxismos a centralidade do enfrentamento à ordem imperial e o destaque aos povos oprimidos do mundo colonial e semi-colonial como sujeitos da emancipação social.

Em consideração final, é de assinalar que os chineses, os vietanaminas, os cubanos, os argelinos, os angolanos, os sul-africanos e tantas outras nações – a corrigir a declaração da III Interncional de que “quando soar à hora da ditadura do proletariado na Europa, terá chegado à hora da vossa libertação” –  não ficaram a esperar os exito das classes trabalhadoras europeias e norte-americana para quebrar os grilhões do colonialismo tendo as lutas de libertação nacional sido ao longo do Século XX o principal desafio lançado a ordem burguesa.

Para ler mais:
Ho Chi Minh (1922). Algumas Considerações Sobre a Questão Colonial
____________(1955). O Leninismo e a Libertação dos Povos Oprimidos
____________(1960). O Caminho Que Me Levou ao Leninismo

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Artigo publicado originalmente em Democracia Socialista e agora ampliado.