A Questão Democrática e a Revolução Russa – Raul Pont

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Há um século a revolução russa surpreendia o mundo. A conjuntura em que ocorre surpreende seus próprios protagonistas e rompe com alguns conceitos consolidados. A participação da Rússia na Guerra Mundial foi um desastre para o regime czarista. Empurrada pela Entente Cordial, a Rússia czarista entra numa guerra para a qual não estava preparada e a crise no front – logística, armamento, desabastecimento, derrotas – acelera a crise do regime.

O pano de fundo, no entanto, não é a única ruptura. No campo socialista a visão predominante era de uma revolução política que instaurasse uma república constitucional com ampliação da liberdade e da democracia ausentes no czarismo.

Para o Partido Operário Social-Democrata Russo (PSODR) e a maioria da socialdemocracia europeia, o caminho passava pela Alemanha, a Inglaterra e outros países com um maior desenvolvimento urbano e industrial, portanto, com uma classe operária mais consciente e organizada. A Social Democracia alemã era o principal exemplo ainda que, nesses países mais industrializados da Europa, os representantes socialistas nos parlamentos haviam conciliado com as declarações de guerra, negando seus compromissos internacionalistas.

A agudização das consequências da Guerra Mundial no país que Lenin considerava o “elo mais fraco da cadeia capitalista” irá contrariar outro conceito da elaboração teórica predominante. A ideia de que a derrubada do regime czarista, necessariamente, seria seguida de uma etapa de fortalecimento do desenvolvimento capitalista e do regime constitucional parlamentar. Com mais democracia, com a representação do campo socialista e com a consolidação de instituições semelhantes à Europa Ocidental. Afinal, as palavras de ordem dos socialistas russos de “Paz, Pão e Terra” não apontavam para uma ruptura radical.

A Rússia, no entanto, havia vivido a insurreição de 1905 e esta deixara uma forte experiência e um rico aprendizado sobre o comportamento das classes e seus partidos nesses momentos de crise e, principalmente, o protagonismo das classes populares na auto-organização dos “conselhos” de resistência, de luta e de representação que Trotsky sinalizou no seu conjunto como o “Ensaio Geral” da revolução que se aproximava.

O POSDR há mais de 15 anos convivia com a cisão entre “bolcheviques” e “mencheviques”, mas o grande teste na capacidade de compreender cada conjuntura, cada momento de uma sociedade em grande convulsão ocorrerá após a queda do Czar, quando em abril Lenin defende no Partido a proposta de “todo poder aos sovietes”, frente à crise de legitimidade e representação da Duma, o poder parlamentar que substituirá o Czar.

A singularidade da tese é uma mudança radical da tática etapista em curso. É um dos exemplos mais ricos da capacidade política de um Partido, de uma força política, avaliar os acontecimentos, compreender as mudanças e agir tomando novos rumos.

A gravidade dos acontecimentos no front, a escassez dos alimentos, a exaustão da guerra e a fome são a base objetiva para que as massas compreendam que a paz, o pão e a terra não serão alcançados por um parlamento influenciado pela França e a Inglaterra e com fortes interesses materiais na manutenção do conflito.

“Sovietes e eletrificação são as bases de um novo mundo” – 1920

Os “Conselhos Operários” estendem-se aos camponeses, aos soldados e a outras camadas populares que estabelecem uma crescente disputa de representação e legitimidade com a Duma e os parlamentos locais. Estava colocada a questão de um duplo poder na sociedade. Os bolcheviques desequilibraram com ousadia ímpar este impasse, transformando o processo de revolução política que a Rússia vivia em uma Revolução Social de imensa consequência mundial: surgimento do primeiro Estado Socialista, divisão histórica do movimento socialista com o surgimento dos partidos comunistas em todo mundo e a primeira grande experiência entre Planejamento versus Mercado.

A tese de abril, “todo o poder aos sovietes” concretiza-se na Revolução de Outubro e no surgimento de um governo revolucionário decidido a construir uma sociedade socialista.

A tese soviética, no entanto, não era apenas uma forma de materializar os anseios das massas que, espontaneamente, vinham fortalecendo uma experiência nos “conselhos” e que se colocou como alternativa de poder numa conjuntura bem determinada.

A palavra de ordem encerrava um grandioso desafio, isto é, como convertê-lo em uma nova institucionalidade, em um novo sistema alternativo de representação democrática que fosse superior a democracia burguesa ainda profundamente marcada pelo poder econômico, pelo voto censitário, pela exclusão das mulheres e dos pobres que não tinham acesso à educação, mesmo na Europa ocidental.

Os “conselhos” foram capazes de arregimentar e organizar amplos setores para derrotar o regime czarista, mas, não se constituíam, eram insuficientes para construir outra sociedade no plano de sua estruturação política. O pensamento clássico do marxismo do produtor – legislador simultaneamente, as ideias da democracia e ação diretas, da democracia“ não-delegada” requeriam, necessariamente, condições favoráveis para florescer.

A realidade histórica foi outra. A brutal guerra civil, o cerco e a invasão imperialista na Rússia e as próprias contradições internas da revolução dificultavam ao máximo as experiências de superação democrática.

A guerra civil e a invasão cobraram seu preço. Os outros partidos do campo socialista e popular foram proibidos e a própria democracia interna entre os bolcheviques foi desaparecendo. O princípio básico do pluralismo no interior dos sovietes esgotou-se e a tese do “partido único” da classe consolidou a tendência à burocratização autoritária.

A morte de Lenin e a vitória de Stalin na luta interna dos comunistas russos bem como o refluxo da onda revolucionária que sacudiu a Europa no pós-guerra consolidou a tese stalinista de construir “o socialismo em um só país”. A Internacional Comunista, a III Internacional, tornou-se um instrumento de defesa e de propagação do modelo soviético, estiolando o debate e a crítica no pensamento marxista.

A Revolução inconclusa deixou uma grande dívida. A burocratização, o partido único, o planejamento centralizado autoritário soterrou a singela definição da “ditadura democrática dos operários e camponeses” ou “a ditadura do proletariado” diante da “ditadura do capital” exercida via o pluralismo e a liberdade sofisticados ideologicamente, mas sob o domínio do poder econômico e de uma complexa institucionalidade.

As experiências socialistas em outros países ao longo do século XX sofreram a influência dessa matriz ou não se transformaram em uma alternativa sólida como ocorreu na Iugoslávia e em outras tentativas autogestionárias na esfera da produção e sua extensão no plano político.

A questão democrática continua com o grande desafio para a estratégia socialista do século XXI de todos aqueles que não abdicaram da defesa de que o socialismo não existe sem ser profundamente democrático.

Primavera, Outubro de 2017

Com Democracia Socialista