Nenhuma morte é mais importante que outra, mas o simbolismo de alguns assassinatos marcaram nossa história de protestos
por Miguel Martins

“Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte”. Desavisados não duvidariam de que o verso da canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos foi pensado para Marielle Franco, executada na noite da quarta-feira 14 por criminosos ainda desconhecidos.
O desenrolar das investigações pode ou não apontar os culpados, mas a vereadora carioca do PSOL tornou-se “semente”, como o próprio partido definiu. Nos últimos dias, os atos de vigília a exigir esclarecimentos sobre a morte da parlamentar, especialmente os da quinta-feira 15, reforçam essa imagem.
Parte da população brasileira, em especial sua juventude, colheu grãos semelhantes quando o estudante Edson Luís, o verdadeiro homenageado de Milton e Ronaldo na canção Menino, foi morto pela repressão e transformou-se em mártir das manifestações estudantis no Rio de Janeiro em 1968.
Em ambos os casos, milhares de brasileiros levaram o luto às ruas. Embora seja parte do cotidiano de nossa história e se exponha em estatísticas aterradoras, a violência do Estado ou da criminalidade por vezes carrega tamanho simbolismo que escapa à rotina das máquinas, ou à tendência de encarar a insegurança e o medo como sentimentos corriqueiros. Em tempos de instabilidade, uma morte cruel nem sempre passa despercebida.
Exercícios de história comparativa estão longe de ser científicos, e não é aconselhável equiparar os assassinatos da ditadura, de transparente responsabilidade da repressão militar, à execução de uma vereadora em circunstâncias ainda não esclarecidas, em que a participação de agentes de segurança pode ou não vir à tona.
Tampouco se sabe quais as consequências que a morte da vereadora trará para a intervenção federal no Rio ou para o ambiente político do País. A história em andamento não permite grandes análises além de esforços de futurologia.
Há, porém, um elo entre a morte de Edson e Marielle, mais relacionado às suas consequências e menos às causas, que parece despertar parte da população brasileira em tempos de incerteza. Não foram poucas as vezes que mortes simbólicas ou episódios violentos levaram milhares às ruas no País. Pode-se estender a análise a diversos países, mas nossa história é marcada por casos de comoção popular que animaram a luta política.
No fim do Império, há pelo menos duas mortes simbólicas que marcam o fim da escravidão no País. Em 1887, Preto Prio foi fuzilado por soldados após liderar uma fuga em massa de escravos no interior de São Paulo, apoiada por caifazes, grupo de abolicionistas paulistas. De grande repercussão, o episódio aumentaria o desconforto do Exército em assumir o papel de “capitão do mato” dos cativos em fuga. Naquele ano, o marechal Deodoro da Fonseca, então presidente do Clube Militar e primeiro mandatário da República, pediu à Princesa Isabel para poupar o Exército de ações de captura de escravos.
Já a assinatura da Lei Áurea foi acelerada pela pressão do movimento abolicionista após a morte do delegado Joaquim Firmino de Araújo Cunha, também no interior paulista, vitimado por senhores de escravos descontentes com seu desinteresse em caçar cativos fugitivos.
Em nossa história republicana, mortes violentas com frequência foram retrucadas com protestos. Nem sempre são assassinatos. Não é possível negar a brutalidade do gesto de Getúlio Vargas em 1954, ao se suicidar em meio a uma campanha implacável para obrigá-lo a renunciar. Ao apontar para seus adversários em sua carta-testamento, desencadeou manifestações espontâneas da população nas ruas, que elegeu a mídia e a oposição como os principais responsáveis por sua morte. “Meu sacrifício vos manterá unidos”, escreveu em sua missiva histórica.
A morte violenta de um presidente no posto, seja Vargas ou John F. Kennedy, é sempre traumática. Mas os protestos de nossa história muitas vezes são desencadeados pela brutalidade contra cidadãos que estão na base, e não no topo da estrutura de poder. São estudantes, jornalistas, ativistas políticos e até defensores do meio ambiente, como Chico Mendes, assassinado em 1998 a tiros de escopeta por Darci Alves a mando do pai, o fazendeiro Darli Alves.
Nascido em Belém, Edson Luís era filho de uma família pobre no Pará. Para cursar o segundo grau no Instituto Cooperativo de Ensino, mudou-se para o Rio nos anos 1960. Na escola, funcionava o restaurante Calabouço, alvo de reclamações dos estudantes por suas refeições de baixa qualidade e condições precárias.
Foi um protesto estudantil carioca por melhor estrutura que originou uma das ações policiais mais repressivas do País antes da decretação do AI-5. A invasão do restaurante pela polícia e os disparo fatal contra o secundarista paraense inflaram o movimento estudantil. Nos dias seguintes, diversas manifestações de estudantes no Rio e em São Paulo misturaram comoção e protesto. Dois meses depois, a Passeata dos 100 mil representaria o auge da resistência estudantil à ditadura até então.
Outro assassinato de um estudante também reacenderia a resistência no auge da repressão militar. Em 1973, a morte de de Alexandre Vannucchi Leme, graduando de geologia da USP, pelo DOI-Codi de São Paulo voltou a mostrar a força do movimento estudantil, que organizou com dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, uma missa na catedral da Sé em sua memória. Apesar da intimidação policial, o evento reuniu 3 mil cidadãos.
Em 1973, a semente foi novamente um estudante. Dois anos depois, um jornalista. Diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog foi convocado pelo DOI-Codi em 1975 a prestar depoimento sobre seus vínculos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). No dia seguinte, estava morto. A versão oficial da ditadura de que teria sido um suicídio, supostamente corroborada por uma foto do jornalista enforcado, não convenceu.
Na imagem, Vlado estava de joelhos dobrados, com a cabeça pendida para a direita e o pescoço preso a uma tira de pano. A “fake news” da ditadura não resistiu à verdade indiscutível, testemunhada por colegas jornalistas de Herzog também detidos: ele havia sido torturado e morto pelos militares.
O assassinato coincidia com uma greve estudantil em algumas das principais univerisdades de São Paulo. Organizado por Dom Paulo Evaristo Arns, o ato inter-religioso em homenagem à Herzog reuniu 8 mil cidadãos na Catedral da Sé em outubro daquele ano. O número poderia ser maior não fosse o esforço dos militares em dificultar o acesso da população ao local.
Apesar da suposta rivalidade histórica, São Paulo e Rio costumam se unir em tempos de comoção. Edson Luís motivou protestos de estudantes da Faculdade de Medicina da USP, assim como Marielle inspirou atos na avenida Paulista nos últimos dias. Em junho de 2013, os cariocas também se sensibilizaram com a repressão policial sofrida por integrantes do Movimento Passe Livre e foram massivamente às ruas no dia 17. O terrorismo de Estado do fim da ditadura, malfadado no episódio do Rio Centro, também impulsionaria a luta contra a ditadura e os protestos pelas Diretas Já em ambas as cidades.
Neste domingo 18, a comoção uniu novamente paulistanos e cariocas. Seja pelas lágrimas, pela reza ou pela ação, o brasileiro não costuma ficar calado diante da morte brutal de um estudante que luta por melhor estrutura, ou de um jornalista que desafia a repressão, ou de uma vereadora comprometida com os direitos humanos em uma cidade de humanos com tão poucos direitos. “Quem grita vive contigo”, cantou Milton para Edson. E, por que não, para Preto Pio, Joaquim Firmino, Alexandre, Vlado, Chico Mendes, Marielle…
Com Carta Capital